domingo, outubro 22, 2006

A insustentabilidade da gratuidade

Vivemos num mundo capitalista. Tudo se negoceia.
É bem verdade que desde os primórdios do tempo se não havia dinheiro para trocar por aquilo que queriamos, davamos à troca outra coisa que já não queriamos ou cujo valor, aos nossos olhos, era inferior ou equiparável.
É assim que ainda hoje fazemos.
Trocamos coisas. Compramos coisas. Pedimos coisas. Somos capazes de destruir outro só para termos algo que desejamos e que está na posse desse outro.
Tudo com base no nosso desejo individual; no fundo... no nosso egoísmo.
Se alguém nos oferece algo, logo pensamos que teremos que dar algo em troca, ou no exacto momento ou daí a uns tempos, também para não "parecer mal".
Oferecemos coisas ou fazemos coisas muitas vezes com o mesmo objectivo de ser compensados de alguma forma, porque "parecerá mal" não receber de volta a atenção que démos.
Chegamos ao cúmulo de desconfiar de quem nos dá algo de forma gratuita, ou seja, sem desejar nada em troca. Construímos ditados populares para essas situações, de tão irreais que são.
Mas ainda há quem dê (claro que muito raramente) algo de forma gratuita... sim! gratuita...
Quando descobrimos uma pessoa que nada nos exige em troca tentamos obter dela o máximo possível.
Não falo apenas de bens materiais.
Falo acima de tudo de sentimentos.
Sim, até nos sentimentos somos egoístas no que damos e no que recebemos em troca. Exigímos em troca sentimentos de quem nos rodeia que por vezes ultrapassam em muito o valor do que foi dado.
Poucas são as pessoas que nutrem por nós sentimentos de forma gratuita, desinteressada. Poucas são as pessoas que nos oferecem objectos ou momentos de forma gratuita, desinteressada.
Vivemos hoje, tal como no passado, e viveremos no futuro com a insustentabilidade da gratuidade. Não creio que as pessoas mudem. Somos assim por natureza. É esta a nossa natureza, a humana. Mas, por vezes... seria bom que todos entendessemos que, por vezes, os nossos sentimentos para com pessoas que nos rodeiam são verdadeira e puramente gratuitos. E que, se essas pessoas nos quiserem retribuir com algo, que seja apenas com a velha fórmula do "um sorriso", em vez de, na estranha insustentabilidade da gratuidade, nos retribuirem com agressividade.
Vale a pena pensar nisto, e tentar deixar de sermos egocêntricos.

segunda-feira, outubro 02, 2006

Alguém, nalgum lugar, olha por nós

"Amar é conhecer mais do outro do que ele sabe de si próprio e descobrir que ele conhece mais de nós do que nós mesmos. É por isso que, de cada vez que se ama, se descobre a distância entre imaginar que se voa e aprender a voar. Mas o amor «não é uma coisa que se tenha, mas aquilo a que se acede». E é, também, pela sua fragilidade essencial que qualquer «eu amo» se torna tão sensível às mais pequenas desilusões. Mesmo entre os pais e os filhos (porque, nas famílias, as crianças conhecem mais dos pais do que eles próprios conhecem de si ou dos seus filhos...).
Se crescer representa que cada um olhe por si, o olhar só se transforma num promontório quando alguém, nalgum lugar, olha por nós. E sabe mais de nós do que nós próprios. Talvez, por isso, no meio das traquitanas que temos cá dentro, possam confundir-se as pessoas por quem olhamos (que não olham por nós) com aquelas que nos conhecem melhor do que nós mesmos. Diante das primeiras, logo que se sofre, abre-se um desfiladeiro. Com as segundas, cria-se uma ponte. Mas porque é que nos iludimos, tantas vezes, olhando por quem não quer, não pode ou resiste, simplesmente, a olhar por nós? Porque motivo nos iludem, levando a que se traia tudo aquilo a que se aspira?
Eu sei - e você sabe - que escolher é dividir e multiplicar ao mesmo tempo. Essa aritmética do que temos cá dentro torna-se mais difícil quando sempre nos disseram que educar é abotoar o coração, até ao último botão. É de tanto o abotoar que todos nós - uns mais que outros - temos medo do amor, nos baralhamos nele ou, pior, fugimos de o viver, não percebendo que pior do que ter medo é fugir de o ter.
Ao contrário do que sucede na natureza - onde um problema não se resolve com soluções mas com um problema mais complexo que nos desafia com simplicidade - crescemos imaginando que é possível aprender sem errar. No amor, por maioria de exigência. O que transforma, muitas vezes, o coração numa folha de cálculo. Ora, do mesmo modo que dar à luz não é tirar todas as dúvidas (mas pôr problemas), errar é aprender. E descobrir que, olhando por quem se olha, o importante nunca é saber como se faz, mas com quem se conta para chegar ao que se quer.
Talvez, por isso, no meio das traquitanas que temos cá dentro, possam confundir-se as pessoas por quem olhamos (que não olham por nós) daquelas que nos conhecem melhor do que nós mesmos. Com as primeiras crescemos com asas... e pedindo desculpa por voar. Junto das segundas, não são precisas asas para que nos levem a voar. As primeiras são um espelho que nos cega. As segundas desabotoam-nos, por dentro, sempre que fazem de fadas-arrumadeiras e, seja como for, nos dizem (sem o dizer) que, alguém, nalgum lugar, olha por nós."
Eduardo Sá in NotíciasMagazine (24.set.2006)